Carrego em mim a pressa por onde o passo não acompanha o tempo
e não passa a sensação de que preciso fazer algo além de habitar meu corpo.
Tenho urgência. Mais do que ontem, menos do que amanhã.
E quando nasce o dia, claro, limpo, sem esforço,
sou tomada pela displicência e procrastinação.
Algo vibrante lá fora distrai a minha ânsia.
Tanta coisa, tanta coisa.
A cama sorri acolhedora e descompassa o tempo.
O café é só deixar a cafeteira fazer o trabalho.
Hoje é a lei do menor esforço. Tudo. Cafés, pessoas e fast foods. Abandonei o coador de pano, embora o gosto seja mil vezes melhor.
As horas giram no ponteiro do relógio.
A pintura que ainda não fiz,
o livro publicado no sobressalto do medo de não dar tempo,
a criança que ainda não adotei e penso se vou,
as pessoas que precisam mais do meu tempo,
o tempo que não passo tanto com elas enquanto estou cada dia mais comigo.
A minha odisséia imaginária, meu fluxo interplanetário, a cura para o câncer, a cura para o câncer! A cura para a loucura endêmica.
Ai minha gastrite.
Lá vou eu vasculhar o incômodo indigesto, marcar mais uma endoscopia.
Fazer cócegas na alma com o líquido injetado!
E saio leve. Nada em mente. Flutuando apenas, nada pra pensar.
E quem dera essa sensação durasse a eternidade.
Sumiria a pressa.
A urgência. A necessidade da cura. A maldita gastrite. Mas vicia, não é bom esse entorpecimento delicioso.
—Deus, posso te fazer uma pergunta?
—Claro filha!
—O Senhor me acha louca?
—Ah minha filha, já vi piores, não se preocupe. Loucura dessas não tem problema não. Você tem direito.
—Obrigada Deuzinho por aliviar minha humanidade. Eu posso te fazer um pedido, posso?
—Faça minha filha, faça.
—Traz a cura, traz!
—Estamos em recessão, estou racionando as doses. Quem sabe sobra?
— Entendo Pai. Entendo. Tomara! Ai que queimação.
— Pra que tanta pressa minha filha?
— Sei não Pai, sei não. É que eu tenho medo de não dar tempo.
— Sempre dá minha filha. Sempre dá. É que você se esquece que o tempo é meu.
— Então vou dormir mais um pouco, tá bom? Deixar o café pra depois. A endoscopia.
—Durma minha filha, durma. Depois acorde, moa uns grãos de café e passe pelo coador de pano. Café de cafeteira não dá…

“Tempo, tempo, tempo/ És um dos deuses mais lindos…” (Oração ao Tempo, Caetano Veloso).
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Siiiim! Um dos deuses mais lindos! 🙂
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Que legal nossa coincidência. A parte interessante é que a gente usa o tempo em sentido parecidos. Aquela coisa da ansiedade, aquele nervosismo etc. E meu café é no coador hahah
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Adorei! O meu é na cafeteira!!! Hahah
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“O relógio marca as horas pacientemente. Busca incessantemente pelos segundos vindouros, embora desconheça completamente, o mais breve futuro.”
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Perfeito! 🙂
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Enquanto coo o café, medito para diminuir a ânsia do dia… viva o coador de pano e o café que dele demora um tempinho para ser coado… salvação do dia…
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Podemos exercitar a meditação em pequenas coisas do dia. Coar o café lentamente, sentir o aroma, saborear, sem dúvida uma forma excelente de aliviar a ansia do dia. Voltando para o caodar de pano! 🙂
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🙏🙏🙏
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identifiquei-me de imediato. café – hoje sem poder tomar um xícara sequer -, a passagem sobre a cura do câncer, e, bom, seguir em frente. gostei de ler, gostei do café imaginário que pude fazer e sentir seu cheiro, e fortaleci a cura do câncer. muito obrigado, me fez muito bem ler teu texto e tua sensibilidade. o meu abraço.
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que alegriiia ter aguçado o seu imaginário dessa forma! conheço essa luta pelos olhos do meu pai e você não imagina a força de suas palavras. eu que te agradeço imensamente!
pela sua força, coragem e sensibilidade. grande abraço.
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